domingo, 3 de fevereiro de 2013

A ciência dos cabos - parte 1: Facas de Campo

Acredito que durante a aprendizagem e o desenvolvimento das habilidades técnicas de um cuteleiro, o que se leva mais tempo para dominar, dentre os itens de construção básica de uma faca (lâmina, guarda, cabo e bainha) é a confecção dos cabos. 

Não que as demais partes não tenham suas técnicas e segredos, mas o cabo é mais tridimensional e, via de regra, não possui ângulos retos, o que dificulta muito a definição de suas formas, dimensões e simetrias.  

Tenho visto nestes anos que normalmente cuteleiros em fase inicial de carreira, cometem reiteradamente os mesmos erros, por falta de habilidade e medo errar, fazendo cabos curtos e muito gordos (volumosos) e portanto desconfortáveis para o uso. Eu cometi este erro por um bom tempo e acredito que tenha levado cerca de 4 anos para confeccionar cabos excepcionalmente bem feitos.

Muito embora pareça ser um item simples na construção de uma faca, é um dos maiores responsáveis quando da avaliação se uma faca pode ser considerada boa ou não.


Uma faca de campo, com seu cabo repleto de detalhes técnicos.

Nesta matéria pretendo explorar a construção de cabos, vislumbrando tão somente a funcionalidade e performance. Deixo de explorar questões estéticas, abordando as facas, neste caso específico somente como ferramentas. Não vou mergulhar nas técnicas de aprimoramento estético, pois além de serem inúmeras, são irrelevantes quanto à performance. 

As questões abordadas nesta matéria não são aplicáveis aos projetos que objetivam única e exclusivamente o colecionismo, ou seja, peças que são idealizadas e executadas somente para investimento e exposição, não para uso prático e de alta performance!!!

Vou abordar a construção dos cabos das 4 principais famílias de facas, destas quais derivam inúmeros outros tipos, qual sejam:

1. Facas de campo;

2. Facas de luta;

3. Facas de caça;

4. Facas de cozinha.

Para tal, tratando-se de um tema muito extenso à ser explorado, pretendo escrever por etapas sobre cada uma destas famílias de facas, uma por vez, para que todos os interessados possam ler e aproveitar os conhecimentos, lendo um pouco por vez, para absorver serm ficarem enfadados com uma leitura muito extensa.

Antes, algumas considerações de ordem geral...

O que um bom cabo deve proporcionar:

1. Segurança

Este item foi elencado antes dos demais por ser, sem dúvida, o mais importante de todos. É senso comum que um cabo mal construído, pode fazer com que o usuário de uma faca se fira gravemente. Se isso acontecer em um acampamento, a dezenas ou centenas de quilômetros do atendimento médico mais próximo, pode significar a morte.

Eu mesmo presenciei um caso grave, em 1993 quando participava de um treinamento militar em área rural, na serra do mar no litoral paulista. Um de meus colegas, à época Cadete, hoje Capitão, fazendo a função de "homem facão", o responsável de uma patrulha por abrir uma picada conforme o azimute (direção objetivada, apontada pela bússola) dado pelo "homem bússola", depois de extenuantes horas usando o facão, deixou-o escapar da mão, batendo-o contra o próprio joelho. Isso produziu um corte muito extenso e fundo, tendo que ser removido às pressas em maca improvisada, por vários quilômetros de selva até o suporte médico. Graças à Deus ele sobreviveu, mesmo tendo perdido bastante sangue, não lhe restando nenhuma sequela.

Vamos raciocinar juntos.....

Será que se o cabo do facão tivesse reentrâncias , protuberâncias e curvas nos lugares certos, de modo a encaixar melhor os dedos e a palma da mão de meu "Irmão de Armas", proporcionando uma ergonomia que oferecesse melhor estabilidade, isso teria acontecido? 
E mais além....se o cabo fosse equipado com passador de fiel, aquela cordinha que atravessa o cabo e prende o facão ao pulso do usuário para evitar escapes indesejados ele teria se cortado? Muito provavelmente não!!!

2. Conforto: 

Parece um item óbvio, mas que acaba negligenciado em alguns projetos executados para facas de uso prático. 

Alguns pontos...

Imagine uma faca que será utilizada por diversas horas ininterruptamente, que tenha qualquer tipo de quina viva no cabo......inevitavelmente produzirá bolhas e desconforto demasiado.

Imagine também um cabo curto, para uma faca pesada. Você fará o dobro da pressão manual para manter o controle da faca. Resultado: fadiga e desconforto. Isso é definido pela Ergometria, ou seja, a ciência que define as medidas mais adequadas das ferramentas às medidas e funcionalidades de nossos corpos.

Passando para a indústria automotiva....alguém já parou pra perguntar porque todos as empunhaduras de câmbio de nossos automóveis são curvas? O que....você nem havia reparado nisso? Pois é, todos as empunhaduras de câmbios de transmissão mecânica são curvas! Mas porque? Simples: porque nossas mãos não se fecham retas, elas são curvas. Isso é Ergonomia, a ciência que adéqua o formato construtivo dos objetos ao formato e funcionamento de nossos corpos. 



3. Funcionalidade: 

A funcionalidade aqui analisada, confunde-se com a performance. Para cada destinação prática de cada faca, existe um projeto construtivo que faz com que esta trabalhe melhor, que tenha mais performance como ferramenta. 

Para me fazer entender, vou usar um exemplo esdrúxulo, mas eficiente para transmitir a ideia:

Um taco de baseball  é uma ferramenta empunhada pelas duas mãos e que é utilizada girando em torno do corpo, tendo este como centro do giro. 



Uma foice também se enquadra exatamente na mesma definição acima descrita.




Entretanto, uma ferramenta se destina a rebater bolas arremessadas e a outra para cortar vegetação. Imagine se adaptássemos um cabo de foice em um taco de baseball. O rebatedor não teria precisão nem tampouco velocidade para fazer o seu trabalho.
Se invertêssemos, colocando um cabo de taco de baseball em uma foice, o homem do campo não conseguiria frear o giro da foice após cortar uma touceira de capim para seu cavalo.

Ou seja, para cada aplicação prática de qualquer ferramenta, exige-se uma linha de raciocínio específica que estabeleça qual forma construtiva proporcionará melhor funcionalidade e performance. Para facas e ferramentas cortantes essa regra é a mesma. 


Facas de Campo

Vamos juntos pensar na aplicabilidade prática de uma faca de campo. Uma camp knife é uma faca com a qual seu usuário realiza todas as tarefas necessárias durante um dia de trabalho no campo. Desde descascar uma laranja até cortar capim e madeira. Aí temos um ponto bem específico no uso de uma faca de campo. Para cortar madeira é necessário bater com a faca.


Teste de corte com uma faca de campo recém terminada.

Eu faço uma divisão própria na definição dos tipos de corte: Corte deslisante (empregado no uso da maioria das facas) e Corte impactante (tipico das facas de campo e espadas, que cortam batendo). E esse impacto, por si só, exige que se observem alguns quesitos técnicos na construção do cabo de uma faca de campo.



Normalmente uma camp knife é uma faca de grandes dimensões e também necessita ter bom peso para que seja mais eficiente ao cortar batendo. Desta forma, seu cabo deve acomodar com bastante segurança os dedos que realmente seguram a faca, sendo o mínimo, o anular e o médio. Estes mantém a estabilidade. 

O "estreitamento" da porção posterior do cabo, 
terminando com uma parte mais espessa para dificultar o deslise da mão,
onde os dedos de trás conferem segurança à empunhadura.

A visão superior, chamada de coke bottle, ou garrafa de coca-cola,
pela óbvia semelhança de formato. 

Reputo ao dedo indicador o trabalho de dar precisão ao emprego da faca, fazendo que sua utilização aconteça conforme deseja o usuário. Tanto é assim que normalmente empunhamos uma faca fazendo muito menos força com o indicador que com os demais dedos. 



Para empregar mais controle durante o emprego da faca, alguns projetos possuem um separador entre os dedos indicador e médio. Provavelmente o maior exemplo disso são as modernas facas de campo Gaúchas, com seu virtuoso cabo pistol grip, ou cabo de pistola, extremamente seguro e controlável.


A vista lateral do separador de dedos.

Esta visão mostra que mesmo volumoso, o cabo não é largo.

Uma visão bem característica do pistol grip Gaúcho.

Outro ponto importante aos cabos das camps, é o volume de pegada (sempre mais altos do que largos). Normalmente quando se usa uma faca de campo não se a empunha e solta diversas vezes sequencialmente. Por exemplo, abrindo uma picada no meio do mato, cortando madeira ou cortando capim, empunha-se a faca uma única vez até que se termine o trabalho. 

A Leviatã, minha maior faca de campo, com 13 polegadas de área de corte.

Isso não exige que seja um cabo mais estreito, de acesso mais fácil, como por exemplo o das facas de cozinha, as quais o usuário as empunha e solta dezenas ou mesmo centenas de vezes quando em uso. Para isso, um cabo mais fino facilita a ação.

O cabo, sempre mais alto que largo.

Por outro lado, mais volume em contato com as mão proporciona maior eficiência na dissipação de energia mecânica advinda dos impactos. Além de ser mais seguro, é também mais confortável.

O separador dos dedos indicador e médio bem definido.

Um último recurso que pode ser empregado nas facas de campo é o passador de fiel. Tratando-se de uma faca bastante pesada e grande, é recomendável que se lance mão deste artifício, conforme explanei no caso do exercício militar no começo desta matéria. 

O fiel conferindo maior segurança ao usuário.

Espero que tenham gostado e que tenha sido esclarecedor. Em breve estarei publicando outro artigo sobre os cabos das facas de luta. Forte abraço a todos.



https://cursodecuteleiro.com.br/

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42 comentários:

  1. Excelente postagem. Parabéns. Quando falamos de facas, os leigos como eu, já pensam em lâmina, porém uma faca é um conjunto. Prova disto é o que vale uma excelente lâmina, sem um cabo adequado. Três movimentos que você dá com tal faca numa madeira ou outro material, as bolhas na mão já vão aperecer. Parabéns Berardo.

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    1. Agradeço muito pelos elogios e fico feliz que tenha lhe ajudado. Abração.

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  2. Que belo texto Eduardo, os cabos ainda me são o meu calcanhar de Aquiles!
    Com certeza um belo texto que merece ser lido, guardado e sem dúvida, compartilhado!

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    1. Muito obrigado Márcio. Siga firme que em breve seus cabos estarão top de linha. Abração.

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  3. Meu caro, Berardo como sempre suas matérias primam pela clareza objetividade!!! Esse assunto é primordial pra quem aprecia cutelaria de excelência. Muito Obrigado.

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    1. Olá Irmão Serapa, obrigado mais uma vez por toda a gentileza. Um grande abraço!!!

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  4. Grande Berardo!!!

    Muito feliz em estar presente no seu primeiro prêmio: melhor iniciante, e em tantos outros... Mais feliz ainda em poder acompanhar sua evolução e hoje estar aqui aprendendo e compartilhando este Blog recheado de informação.
    Valeu!!!

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    1. Oi Silvaninha, eu também acho maravilhoso ter estado ao lado de uma pessoa maravilhosa como você desde o início. Um beijão no coração de toda a família!!!

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  5. Obrigado Berardo por este post, estas informações são de extrema importância para mim e outros tantos iniciantes na arte da cutelaria.
    Gostaria que você aborda-se também:
    Tipos de cabos, inteiriços ou bipartidos;
    Formas de fixação dos cabos em suas lâminas;
    Relação de medidas entre cabos e lâminas, espessura das talas, largura do cabo altura e comprimento de ambos.
    Obrigado Professor!!!!

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    1. Olá Rodrigo, que bom que tenha gostado. Pretendo aos poucos ir publicando tudo o que aprendi, para difundir o conhecimento. Abraços.

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  6. Muito boa a matéria, detalhes que não tinha compreendido ficaram mais claros. A sua linguagem simples ajuda muito no entendimento.
    Forte abraço.

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  7. Grande Berardo, mais um bom artigo, e como sempre voce prima pela pela clareza na transmissão das informações, forte abraço.

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    1. Fico satisfeito que tenha ajudado. Isso me incentiva a continuar. Abraços!

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  8. tenho um exemplar de sua autoria e me acompanha ja faz alguns anos 24h por dia deu um belo casamento,exelente trabalho!

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    1. Melhor ainda que um elogio, é um cliente satisfeito. Muito obrigado e abraços!

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  9. Parabéns Berardo....seu trabalho e talento são indescutíveis! Gostei muito da riqueza de informações postadas aqui e com muita clareza.....grande abraço e sucesso sempre!

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  10. Excelente matéria, Berardo!

    Pra quem está começando, esse tipo de análise e informação tem um valor muito especial.

    Obrigado pelas dicas!

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    1. Então Oscar, acho que atingi meu objetivo, que era o de produzir conhecimento realmente relevante. Muito obrigado por prestigiar meu blog e por postar suas impressões. São extremamente importantes para mim. Forte abraço e que Deus te abençoe!

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  11. Muito bonito seu trabalho, e gostei do damasco em W, voce tem muito talento,sou cuteleiro a apenas um ano e faço parte do forum FCA, admiro os mestres como voce.Um abração amigo.

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  12. Parabéns, já tinha admiração por facas e teu blog foi a alavanca! Decidi,vendo teu trabalho,que vou aprender a dominar o aço!!! Espero poder contar com suas dicas sempre que surgirem duvidas,e não serão poucas. Um grande abraço e mais uma vês meus parabéns pela dedicação ao teu trabalho!!!!!!

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  13. Parabéns excelente post sobre os cabos! uma obra prima,quantos pequenos grandes detalhes na confecção.
    []ços
    Sallero.

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  14. boa tarde caro amigo, esta de parabéns, excelente seus trabalhos. estou iniciando nesse mundo das facas e tenho algumas duvidas, gostaria de saber se tem como sanar elas!? o que você usa na fixaçao dos cabos, desde de colas ate os pinos? agurado resposta
    obrigado

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    1. Olá Diego, bom dia. Normalmente uso epóxi bi-componente como cola e varetas de solda de 1/8 ou 2,5 mm como pino. Abraços.

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    2. Muito obrigado pelas dicas! aprecio demais suas obras de arte! fique com Deus! Abraços

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  15. Grande trabalho e belas dicas, parabéns pelo artigo! Extremamente esclarecedor e direto ao ponto!

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  16. Muito interessante e objetivo teu texto, será de grande ajuda à nós cuteleiros. Abraço

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  17. Sensacional texto com certeza será de grande valia à muitos cuteleiros, parabéns pela matéria. Abraço

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  18. Sou apaixonado por lâminas e suas criações começei a pouco tempo no ramo e através dos seus vídeos tem esclarecido muitas duvidas valeu parabéns.

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  19. Parabéns excelente artigo!que tudo esta em sintonia em um cabo perfeito, desde o material escolhido a sua ergonomia, ainda na minha modesta opinião a madeira é a que mais se destaca.
    abraços

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  20. Primeiramente parabéns....
    Sou seu aprendiz a longa distância.
    O senhor e é nota 100000000000....
    Se não fosse o espírito de mansidão que o senhor tem conosco aprendizes estaríamos perdidos...
    Assisto ao vídeos do senhor sempre.. .obrigado por copartinha o conhecimento....

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  21. Amigo você é um exemplo de ser humano, você passa seu conhecimento como um irmão pra pessoas que vc nem sabe quem, e muito dificel pessoas igual a você num mundo tao egoista que vivemos. Abrassos, que você esja muito feliz,Pedro Luiz

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  22. Caro Berardo,

    Parabéns pelo trabalho e obrigado pelos ensinamentos. Gostaria de alguma dica sobre desenho dos cabos. Tenho encontrado certa dificuldade em desenhar os cabos à mão para molda-los. O senhor teria alguma recomendação a esse respeito?

    , abraço

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  23. Boa noite Berardo seus conhecimentos são top estou começando a fazer facas e agradeço suas dicas técnicas.Deus abençoe vc e sua família. Brasil acima de todos E Deus acima de tudo.

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  24. bom dia caro amigo, parabéns pelo excepcional trabalho e a iniciativa de passar seus conhecimento para frente, espírito de corpo !!! Estou iniciando e sem muito tempo, com a cutelaria e tenho algumas dúvidas, gostaria de saber como os cabos ficam com esse brilho e cor viva, pois passo óleo de tungue que é muito bom mas eles acabam escurecendo a madeira e mesmo polindo não abre esse brilho perfeito ? Agradeço a atenção, Fé na Missão !!! att Átila Herbichi, Facas TOSQUIA.

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  25. Parabéns Berardo ,você é referência quando o assunto é facas de qualidade!

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  26. Excelente trabalho Bernardo! Taí uma coisa muito bacana que estou descobrindo ao iniciar na Cutelaria, tal qual na Apicultura, o Cuteleiro compartilha o conhecimento. Eu acho isto muito bacana e te parabenizo pelo excelente artigo sobre cabos!

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