Claramente a culinária francesa é a mais famosa, apreciada e referenciada pelos amantes da alta gastronomia no mundo.
Não somente a culinária, mas praticamente todos os aspectos da identidade do povo francês, fazem com que este seja reconhecido como altamente requintado.
Como não poderia ser diferente, a escola de culinária mais famosa do mundo, também desenvolveu o modelo de faca de cozinha mais reproduzido e usado.
Quer seja uma faca de alto desempenho, confeccionada em aço damasco forjado artisticamente, quer numa versão mais popular, fabricada industrialmente, praticamente todos já viram e usaram uma Sabatier.
Uma antiga faca em estilo tradicional Sabatier
O nome Sabatier é originário da região de Thiers, na França, no início dos anos 1800.
Desde os idos da Idade Média, Thiers foi ligada a indústria de talheres.
Com o advento da era industrial os fabricantes começaram a consolidar seus ofícios e desenvolver suas próprias marcas.
Vista panorâmica da cidade de Thiers
Nesta época, duas famílias começaram a usar simultaneamente o nome Sabatier para produzir e vender facas.
Aparentemente elas não tem qualquer relação de parentesco, somente as coincidências do mesmo nome e de produzirem facas.
Jean Sabatier de Le Moutier (Thiers inferiores) e Phillipe Sabatier de Bellevue (Thiers superior).
Thiers
Existe muita controvérsia de quem teria registrado primeiramente o nome e nenhuma comprovação material de que o tenha feito.
O nome Sabatier não é considerado uma marca, porque foi usado por muitas empresas diferentes antes mesmo da existência de leis de propriedade intelectual ou de marcas comerciais entrarem em vigor na França.
Por fim, diante desse mistério, ficou o legado do modelo da mais bela, versátil e eficiente faca de cozinha existente no mundo (em minha opinião, claro!).
Enfim vamos analisar o projeto da Sabatier detalhe a detalhe...
A faca
1. Técnica Construtiva:
Controvérsias à parte, a Sabatier tem como uma de suas características principais, ser forjada integralmente, ou seja, numa única peça de aço.
Essa técnica construtiva traz algumas vantagens...
Primeiramente pode ser considerada mecanicamente mais forte do que se fosse, por exemplo, uma estrutura formada por diversas peças montadas.
Outra grande vantagem é que, não existindo emendas, também não existirão frestas para acúmulo de sujeira e restos de alimentos que, em se tratando de uma faca projetada para o processamento de alimentos, pode ser muito perigoso por causa da contaminação com fungos e bactérias.
2. Aspecto estético:
Se pensarmos nesta faca como uma ferramenta para cozinhar, a questão estética não pode ser considerada como prioridade principal.
O mais importante é que a "ferramenta" realize com alto desempenho todas as funções para as quais fora projetada.
Mas, até nisso as Sabatier são primorosas.
Como um carro esportivo de alto desempenho e extrema elegância, as Sabatiers tem em seu projeto o aspecto arrojado, esguio, fluído e com cada curva e detalhe no lugar exato onde deveria estar.
É um projeto elegante e requintado em sua totalidade.
3. O fio:
Costumo brincar, fazendo um trocadilho com um texto bíblico, dizendo que uma faca serve tão somente para cortar e furar, e o que passar disso "é de procedência do mal"! Ou seja, além disso, é invencionismo barato!
Analisando-se qualquer tipo de faca existente no mundo, mais uma vez sob o aspecto da ferramenta, ela se presta exclusivamente à duas funções principais: cortar e furar. Algumas, dependendo do projeto, apenas tão somente à uma destas funções.
Um punhal stiletto, por exemplo, destina-se única e exclusivamente à perfurar, já um cutelo de cozinha, somente à cortar..., mas vamos voltar às facas de cozinha!
3.1. O perfil:
O perfil do fio das Sabatier, fazem delas incríveis máquina de cortar.
A curvatura acentuada e gradual, desde a proximidade com o cabo, até a ponta, reduz a superfície de contato inicial entre o fio e o objeto a ser cortado, que por ser menor, produz consequente aumento de pressão na área de corte, que toca o objeto.
Além disso, a curvatura proporciona que o usuário corte fazendo um movimento de mata-borrão, ou seja, cortar mediante um movimento de subir e descer a lâmina, sem no entanto tirar o fio da tábua.
Isso proporciona alta velocidade e controle sobre os cortes.
3.2. A geometria:
Muito embora um leigo desconheça, existem muitas diferenças nos fios das facas, dependendo do destino a que foram projetadas.
Facas que se destinam à cortes mediante impacto como cutelos projetados para cortar ossos, e grandes facas de campo, que devem se necessário, botar uma árvore ao chão, devem contar com uma geometria de fio mais robusta, sensivelmente mais obtusa, que lhe confira mais resistência mecânica para manter a integridade do fio, sem fraturas, quando cortam.
Já facas de caça, luta e cozinha, por exemplo, dentre outras, trabalham mediante cortes deslizantes e para tal, não carecem de uma estrutura muito robusta para fazerem bem o seu trabalho.
Ao contrário, é desejável um fio mais agudo e portanto agressivo, que proporcione cortes precisos e sem resistência!
4. A ponta:
Muito embora não se use com tanta frequência a ponta da faca enquanto se cozinha, considero a existência da ponta agressiva, uma das virtudes das Sabatier que as fazem sobrepujar as Santoku japonesas na cozinha, para uso geral.
Inevitável imaginar uma carne que necessite, por exemplo, da remoção de alguns pontos de gordura.
Aí vocês podem pensar..., mas para isso eu posso usar uma faca menor e mais pontuda!
É exatamente esse o ponto que faz da Sabatier uma faca mais completa do que os demais projetos.
Você faz tudo com ela..., sem precisar de qualquer outra faca!
5. A lâmina:
5.1. Comprimento:
As dimensões mais produzidas das Sabatier pelo mundo, sem dúvidas são as de 10 polegadas de comprimento de lâmina.
Como faca principal de chefs, essa é a medida mais desejada, pois é capaz de realizar qualquer tipo de trabalho na cozinha.
Geralmente recomendo entre 8 e 10 polegadas para meus clientes, dependendo do uso.
Para aqueles que pretendem usar as facas para comer um bom churrasco, recomendo a medida maior.
5.2. Largura:
Já no tocante à largura, em obediência ao estilo, procuro sempre confeccioná-las largas, próximo de 2 polegadas.
Isso reflete em duas coisas: mais estabilidade quando se corta grandes volumes, como um maço enrolado de folhas de couve; e maior distância dos dedos do usuário entre o cabo e a tábua.
Se tivéssemos uma faca estreita, certamente os dedos tocariam a tábua e gerariam desconforto.
5.3. Espessura:
Essa questão é simples: as Sabatier não servem para cortar árvores! Logo não necessitam de massa. Isso significa que quanto mais leve melhor. Sendo leve o usuário pode sutilizá-la por horas à fio, com conforto e segurança.
Costumo fazer as minhas com o dorso próximo de 2 milímetros de espessura, o que tecnicamente é muito mais difícil, mas que as tornam muito leves, confortáveis e ágeis.
6. A calha:
Essa nomenclatura foi criada por mim e baseia-se na função à que esta parte específica da faca se destina.
Trata-se da região curva, próximo ao cabo, que fica imediatamente após o término dá área de corte da faca.
Na foto abaixo a calha está bem visível, pois é justamente a área que está refletindo bastante a luz.
Essa região exerce a função de um limitador, bloqueando tanto alimentos quanto fluídos de chegarem às mãos do usuário. Um exemplo:
Ao cortar um abacaxi, o aumento repentino de espessura da lâmina na região da calha, impedirá que a fruta se aproxime da mão do usuário.
Da mesma forma, a calha fará com que o suco do abacaxi, ou gordura, sangue e líquidos de quaisquer outros alimentos, escorram em direção à tábua, ao invés de seguirem em direção do cabo, o que deixaria a empunhadura mais insegura.
A Sabatier é o único projeto que conta com esse recurso!
7. Limitador:
Eu chamo de "limitador" a parte final do fio, que já não corta, em destaque na foto abaixo.
Essa região é propositalmente sem corte e serve para que, quando em corte de alta velocidade, seja por meio de movimento de mata-borrão, seja por movimento de guilhotina, a faca não finque a ponta final do fio na tábua, o que atrapalharia demasiadamente o desempenho do chef.
A Sabatier também é o único projeto que conta com esse recurso!
8. Cabo:
Se fossemos comparar uma faca campeira gaúcha com 10 polegadas de lâmina, com uma Sabatier também de 10 polegadas, notaríamos rapidamente que a proporções dos cabos eram muito dissonantes.
As Sabatier tem, proporcionalmente, cabos muito menores..., e isso tem um porquê!
As facas de campo, por exemplo, carecem de cabos maiores, que preencham completamente a mão, de modo a proporcionar segurança e estabilidade, pois conforme vimos, elas cortam mediante impacto.
Isso produz fortes vibrações nas mãos e quanto maior a superfície de contato, maior o controle e a dissipação de energia mecânica.
O usuário de uma faca de campo não carece de pegar e largar com frequência!
Ao contrário, o ideal é que pegue e não largue mais.
Já nas Sabatier, durante o ato de cozinhar, o chef pega e larga a faca dezenas, talvez centenas de vezes.
Em se tratando de um cabo fino e todo sinuoso, essa alternância entre empunhar e soltar é muito facilitada.
Facas de cozinha com cabos superdimensionados são descômodas e não fazem bem suas funções.
Observação: Todos os cabos das minhas Sabatier são confeccionados com madeiras estabilizadas com resina. Trata-se de um processo onde o bloco de madeira é colocado com resina numa câmara de vácuo. A resina é aquecida e penetra em toda a profundidade da madeira. Isso não altera o aspecto natural da madeira, entretanto mantém esta indefinidamente inerte à proliferação de fungos e bactérias, bem como resistente à rachaduras, dilatação e ressecamento. Ideal para um cabo de uma faca que irá molhar com alta frequência e processar diretamente alimentos.
Provavelmente muitos dos leitores não imaginaram que cada pequeno detalhe desta virtuosa faca, tivesse, além do aspecto estético, uma atuação decisiva no desempenho geral da faca.
Estes fatores diversos somados, fazem das Sabatier, em minha opinião, as melhores facas de cozinha do mundo e é toda essa exigência técnica que me fascina cada vez mais a produzi-las!
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